Introdução
Realizar o comentário desta trilha sonora em sua edição completa seria
uma tarefa complicada, fosse quem fosse o responsável por ele.
Decidido a enfrentar este desafio, resolvi aplicar a tática do “dividir
para conquistar”. Tomando esta idéia como base, ainda me restava a
questão de decidir o que dividir no comentário, e como fazê-lo. Diante
deste impasse, ficou claro que comentar a música em si, os temas e mesmo
as virtudes compositivas do autor deveriam ficar de fora do texto desde
o primeiro momento, e com uma boa justificativa: para que perder tempo
com isso? São largamente conhecidos os acertos e a qualidade da
composição, e por outro lado para que se aprofundar na apresentação dos
temas, seu desenvolvimento, variações, estilo musical, execução de
instrumentos solistas, dados orquestrais, etc.? O melhor é recorrer ao
extenso livreto incluído nesta edição completa da partitura, escrito por
Doug Adams, sem dúvida o melhor conhecedor de todo este tipo de
informação, já que ele é o autor de um livro sobre o tema, do qual aqui
ele utiliza uma parte. Então, o que resta a comentar?
Sem dúvida a edição em si, o formato escolhido pelos responsáveis
para fazer chegar a nós a primeira parte desta longa criação, com alguns
comentários sobre os dados técnicos mais relevantes, a fim de não
aborrecer aqueles que já leram várias críticas desta obra. Pois ao
final, o que conta é o tipo de sentimento que cada um possui por esta
partitura (o melhor é ter os discos e desfrutá-los, esta é a verdade
mais inegável que os leitores deste comentário terão sobre este produto)
e sua disposição em aprofundar-se na música e maravilhar-se com sua
apresentação, adquirindo o que a partir de agora chamaremos “a Caixa”.
Partindo então de um processo de seleção de conteúdos, decidimos separar
e comentar os seguintes itens: a Caixa, os CDs, o DVD e o Livreto.
Realizarei também ao final de cada uma destas seções o que deveria ser
uma inócua valoração numérica subjetiva sobre cada elemento, pois o
realmente adequado seria ler o comentário e não mensurar a qualidade dos
elementos citados, baseando-se numa pontuação normalmente aplicada à
música das trilhas sonoras em disco. Ainda assim, as épocas e modas
decidem os sistemas de crítica, portanto adicionei as cotações para
agradar a gregos e troianos. Passemos então a cada um dos itens
escolhidos:
A Caixa
A
duração das partituras nos filmes da trilogia O Senhor dos Anéis
exigia uma edição com no mínimo três CDs. Após os CDs simples lançados
simultaneamente aos filmes, vem esta caixa com as gravações completas do
primeiro filme, A Sociedade do Anel. O formato das embalagens que
trouxeram trilhas sonoras completas tão míticas como Krull
ou A Conquista do Oeste, oferecia a possibilidade de nelas
incluir três CDs, como acabou ocorrendo com O Grande Motim
de Kaper, da FSM, ou a reedição pela Varèse Sarabande de A Maior
História de Todos os Tempos, de Newman, onde obviamente se
incluíram extensos livretos sobre a música e a edição. Então, porque
aumentar o tamanho da edição para uma “caixa”, em vez de lançá-la numa
embalagem de três discos? A resposta é evidente: apenas para incluir o
DVD como elemento que justifique a valorização de um produto que, de
outro modo, seria mais econômico e provavelmente mais prático, ainda que
não tão bonito ou de feitura tão original. Mas consumado o fato,
conclui-se que a opção de editar nesta caixa toda a música da versão
estendida do filme, tanto em formato CD como DVD, foi a mais lógica.
Pois não resta dúvida, este produto é dirigido aos amantes da saga e de
sua música, e estes provavelmente quererão possuí-lo para desfrutá-lo em
um ou outro formato. Chegará o momento em que todos escutaremos a música
em DVD, mas para os que ainda não o fazem, também foi incluída a
partitura no formato que ainda hoje é majoritário.
Isto não elimina aquela que seria a opção mais lógica, a de lançar em
separado ambos os formatos, propiciando desta forma a aquisição de um
DVD musical em caixa de CD simples, no estilo do magnífico Lean by
Jarre editado pela Milan (que inclui o concerto em ambos os
sistemas, além de entrevistas, informações, etc...), onde toda a
informação do livreto (e muito mais) poderia ter sido incluída em forma
de texto digital. E haveria também a opção da caixa tradicional de três
CDs, sem o DVD, o que tornaria mais barata a aquisição de qualquer uma
das opções. Não obstante, e como mencionado antes, ficaríamos sem este
capricho de colecionador que é a caixa, onde ao modo de um livro escrito
por Bilbo, nos são apresentados de forma elegante os CDs em três
compartimentos, o DVD e o livreto. A título pessoal, a caixa é uma
maravilha, apesar de possuir elementos de inconveniência, como seu
tamanho e fragilidade, além é claro do seu preço elevado. Mesmo assim,
não se pode negar o valor meramente estético do objeto e o prazer de
possuir uma edição única, até agora, no mercado de trilhas sonoras.
Cotação da
Caixa:
****½
2. Os CDs
A
distribuição da música em três CDs torna
impossível seguir a segmentação do livro de
Tolkien ou do próprio filme (apesar de que este teria sido o
desejo de muitos), claramente dividido em duas partes. No entanto, toda
a primeira parte até Rivendel poderia ter sido incluída
em um só disco, já que toda a continuação
exigiria em qualquer caso de mais dois CDs. Então, como fazer
para criar uma audição coerente? A resposta que o selo
Reprise nos deu parece bastante acertada em termos de lógica
interna, bem como na distribuição da quantidade de
música, ainda que não muito inteligente em
relação à narração musical da
história. O mais interessante talvez fosse incluir, como
já mencionado, toda a música da primeira metade (livro 1)
da história no disco 1, mesmo que isso tornasse sua
duração demasiado longa em relação aos
outros CDs. Mas a gravadora optou por incluir uma quantidade de
música proporcional em cada disco e equilibrar a
duração dos três sem levar em conta as
divisões narrativas da história. Deste modo os CDs
possuem uma duração, aproximada e respectivamente, de 58 minutos, 59 minutos e 62
minutos, solução estética adequada para não saturar alguns discos e
sub-aproveitar outros, ainda que escassamente interessante em sua
audição, como progressão sonora da narração.
Caso a distribuição tivesse obedecido ao que sugeri, o disco 1 teria uns
70 minutos de duração e incluiria todo a viagem de Frodo até Rivendel
(desde a primeira faixa do disco 1, “Prologue: One ring to rule them all”,
até “Give up the Halfling” do disco 2). O disco 2 teria 55 minutos e
incluiria toda a jornada de Rivendel até a saída de Moria (de “Orthanc”
do disco 2 até “Khazad-Dum” do disco 3), restando ao disco 3 outros 55
minutos, desde “Caras Galadhon” até a dissolução da Sociedade e o final
do filme. Não teria sido, na minha humilde opinião, uma má distribuição,
e inclusive seria mais interessante em certos aspectos que a realizada
pela Reprise. Ainda assim, a audição que os CDs nos propõem é estupenda,
pois apesar de tudo inclui toda a música do filme, e é isso que todos
queriam. Mas, um momento... eu disse toda? Caso
formos meticulosos (e muitos adoram ser), notaremos a ausência dos
títulos de crédito dedicados aos fãs da saga e membros da Sociedade de
Tolkien, que nas versões estendidas dos DVDs contam com música de Shore.
Esta extensa peça (na maior parte, variações sobre os temas centrais da
partitura) não aparece nestes discos, o que se poderia justificar pelo
fato de que não faz parte do filme e por isso não se incluiria dentro da
música da partitura. Mas se dermos validade a este argumento, talvez
também não devesse ter sido incluída, na música do disco 2, a seção
final da perseguição de Arwen e Frodo pelos Nazgûl, na faixa “Give up
the Halfling” e que na edição original se chamava “Flight to the ford”,
já que no filme este fragmento final, a modo de crescendo fanfárrico
para sopros, não era ouvido e dava lugar para a passagem seguinte, onde
Frodo desfalecia perante Arwen. Este momento é, portanto, música que não
está no filme e por isso tampouco deveria ter sido incluído nos discos,
o que se agradece não ter ocorrido pois foi parte da contribuição de
Shore à continuidade musical da cena, ainda que não tenha sido utilizada
com as imagens.
Outro elemento a destacar, logicamente, é a união dos segmentos musicais
compactos em longos blocos sonoros, que musicalmente proporcionam uma
audição mais satisfatória que a separação da música em dezenas de breves
momentos – sem exagerar, devem ser centenas -, e que aqui foram
combinados com bastante acerto. Ainda que no filme muitas vezes eles
sejam ouvidos com pausas feitas por diálogos ou mesmo silêncios entre
eles, a estruturação dos fragmentos musicais nos discos é notável; neste
aspecto, o único fator mais criticável seria a audição em conjunto da
música, pois todas as faixas dos CDs são praticamente contínuas, sem um
par de segundos nos que permita remeter à seqüência, ao momento
cinematográfico e/ou narrativo da viagem de Frodo, na qual a música se
encontra.
E finalmente temos a inclusão de música source, seja na forma de
música de festa hobbit ou canções de Fran Walsh, que por sua escassa
profundidade musical ou sua discutível intrusão no milimétrico discurso
de Shore poderia ter sido colocada após o score, em forma de
bonus tracks ou similar. Não que esta música comprometa
demasiadamente o desenvolvimento temático da partitura, mas sem dúvida o
enfraquece e quase parece (em especial o sussurro de Gandalf en “Bag
end”) intrometer-se na narração musical da partitura. Em qualquer caso a
idéia final da edição é incluir tal e qual aparece no filme
absolutamente toda a música, e de uma forma ou outra isso foi cumprido à
perfeição. Ainda, merecem destaque os momentos inéditos
incluídos nos discos. Os melhores momentos da partitura, cuja
ausência na primeira edição oficial em CD era sentida por sua tremenda
força e enorme brilhantismo musical
(omissão à época inevitável, dada a impossibilidade de
incluir toda a música de destaque num só disco), são:
Disco 1:
“Farewell dear Bilbo”: Os parentes de Bilbo comparecem à sua
festa de aniversário e os fogos artificiais de Gandalf simulam um grande
dragão. Um par de breves momentos que ficaram na memória do aficionado.
“Keep it secret, keep it safe”: Bilbo desaparece diante dos
atônitos hobbits de sua festa e vai embora do Condado, enquanto Gandalf
investiga os segredos do Anel e seu passado. O início deste bloco é
antológico, em seu emprego da seção de cordas.
“The passing of the Elves”: Frodo e Sam contemplam a migração de
alguns elfos do bosque, acompanhados de uma belíssima e etérea melodia
composta e interpretada (como na cena da festa na faixa “Flaming red
hair”) pelo grupo Plan 9.
Disco 2:
“Orthanc”: Gandalf recorda em Rivendel, diante de Frodo, sua fuga
das garras de Saruman voando em uma águia gigante. Um breve mas intenso
momento onde se ouve uma fanfarra imponente.
“The great eye”: Primeira aparição do tema de Gondor no Conselho
de Elrond, enquanto Boromir fala de sua terra. Melodia essencial para o
desenvolvimento temático da terceira parte da saga.
“Gilraen´s memorial”: Aragorn medita diante da tumba de sua mãe e
a Sociedade do Anel parte de Rivendel acompanhada de um dos temas mais
emocionantes de toda a partitura (incluído nos concertos que Shore
realizou com a “Sinfonia do Anel” em várias partes do mundo), que dá
seguimento à faixa “The ring goes south”, já presente no CD simples.
“The Doors of Durin”: A Sociedade chega às portas de Moria e o
Kraken os ataca, enquanto os heróis entram nas minas. Uma passagem
musical arrebatadora em sua seção final, de uma contundência selvagem.
Disco 3:
“The mirror of Galadriel”: Boromir fala sobre o passado glorioso
de Gondor e Shore introduz pela primeira vez o tema associado a este
passado, ao da espada que cortou o dedo de Sauron e separou o Anel de
seu dono, Anduril, seguido da seqüência onde Galadriel é tentada pelo
poder do Anel, um momento musical comovente.
“The fighting Uruk-Hai”: A passagem mais longa da presente
edição, que em mais de 11 minutos aglutina toda a viagem da Sociedade
desde sua saída de Lorien até seu desembarque nas fronteiras de Amon Hen.
Um tremendo bloco sonoro que dá continuidade musical às cenas com força
e sem perder sua intensidade e inspiração em nenhum momento, incluindo a
faixa “Farewell to Lorien”, anteriormente presente na edição especial em
CD de As Duas Torres.
“The departure of Boromir”: Boromir tenta tirar o Anel de Frodo e
cai protegendo Merry e Pippin, Aragorn vai em sua ajuda antes que um
Uruk-Hai o mate, mesmo assim Boromir morre em seus braços. A intensidade
e emotividade desta seção musical é realmente prodigiosa.
Cotação dos CDs:
****
3. O DVD
Para os amantes da qualidade
sonora e dos avanços da tecnologia, o DVD que acompanha a caixa possui
uma qualidade de som superior àquela que pode nos dar os CDs
convencionais, por melhor que sejam gravados e produzidos. Ao incluir em
apenas um DVD toda a música dos três CDs com qualidade de áudio
superior, sem o inconveniente (para aqueles que não possuem equipamento
CD changer), de ter que trocar cada disco ao seu término, deve-se
perguntar: então, porque não escutar toda a partitura diretamente em
DVD?
A resposta é evidente; se possuirmos o equipamento apropriado para
desfrutarmos a música no DVD, obviamente é o que faremos, já que as
vantagens são tão abundantes que o formato do CD não pode competir com
ele. Além de ganharmos em comodidade e qualidade de audição, o menu do
DVD inclui o nome das faixas e as diversas opções de escolha do tipo de
áudio com que iremos ouvir a música. A verdade é que o CD não resiste à
comparação com o DVD, e deste modo sua disponibilidade é um claro
acerto, ainda que apenas para quando esta opção seja disponível para
todos os aficionados.
Por outro lado, isto nos leva à inevitável pergunta: quando ocorrerá a
substituição da música em CD pela música em DVD? Ainda que a pergunta
fique no ar, pois este não é o local para debater o assunto, acho que é
um bom lugar para fazê-la, a título de meditação sobre o assunto.
Cotação do DVD:
*****
4. O Livreto
Provavelmente
por já ter em mente, antes mesmo do lançamento no mercado da caixa, a
publicação de um livro sobre a música dos filmes da trilogia O Senhor
dos Anéis, seu autor Doug Adams nos obsequia com informações e dados
fantásticos no livreto incluído nesta edição comentada, mas que nos
deixam com a sensação de haver muito mais para dizer. Por exemplo, o
aficionado mais curioso poderá sentir a necessidade (que somente será
satisfeita com a compra do citado livro) de aprofundar-se no universo
musical criado pelo compositor, buscando os textos das passagens de
corais interpretados nas diferentes línguas dos povos da Terra Média, ou
então de descobrir a razão da escolha de certo tipo de orquestração para
uns e outros personagens. Ou ainda, conhecer as biografias dos
envolvidos no processo de criação musical da obra, algo que à primeira
vista seria algo supérfluo, mas por exemplo nunca é demais conhecer os
trabalhos anteriores do compositor (via biografia ou discografia) com os
quais possam ser associadas partes desta obra monumental, como as
líricas melodias de Nobody´s fool ou os elementos corais de
Looking for Richard. Seja qual for o interesse ou curiosidade do
aficionado, o livreto é mais um impecável aperitivo temático sobre a
música que uma leitura definitiva sobre o tema, inclusive indicando a
página da web onde poderão ser satisfeitas muitas das dúvidas não
solucionadas por ele e onde, obviamente, se anuncia o livro e se
recomenda a sua aquisição. Contudo o texto, as fotografias, as
partituras incluídas, o cuidado gráfico, todo o livreto enfim, merece a
mais alta consideração, principalmente em razão do que estamos
acostumados em produtos relativos à música do cinema.
Cotação do Livreto:
****½
Conclusão
Pouco
mais se pode dizer sobre a edição completa da música de A Sociedade
do Anel. Apenas cabe lançar uma pergunta final ao aficionado em
geral e aos colecionadores/completistas em particular, baseando-nos na
seguinte reflexão: se é inegável que Howard Shore realizou um trabalho
musical impecável durante o processo de criação desta primeira trilha
sonora, nela aportando idéias, variações, soluções inteligentes a cada
novo desafio sonoro que as imagens propunham, crescendo no
desenvolvimento das bases mais importantes do score (que dúvida
há sobre a qualidade e importância capital destas trilhas sonoras na
história da música do cinema?), não é menos certo que a obrigatoriedade
do acompanhamento das cenas leva a música de Shore, por momentos, ao
incômodo da saturação. Isto é comprovado em segmentos musicais
destacados, como por exemplo “Parth Galen”, onde um ostinato se
sucede sem variação significativa, mantendo o pulso dramático da cena (Frodo
decide prosseguir sozinho sob os olhares Merry e Pippin, que impotentes
apenas protegem sua partida), mas fazendo musicalmente um fraco favor à
progressão da peça ao nível de intensidade ou maleabilidade sonora.
Agora, a música de filmes é delimitada e influenciada por por este tipo
de situações, que se não baixam o nível geral da qualidade da
composição; claramente estes momentos são muito menos destacados e
interessantes que o resto da criação. Então, a pergunta: porque este
lançamento de absolutamente toda a música? Não teria sido mais
inteligente uma edição expandida que polisse o conjunto, deixando fora
momentos dispensáveis ou repetitivos (como a música do Condado, com a
repetição e variações do tema de Frodo)? Os fãs não seriam melhor
servidos com versões alternativas, trechos rejeitados, etc...? Ou ainda,
quantas trilhas sonoras desta dimensão - em questão de quantidade de
música - suportariam tão bem a edição massiva de sua partitura?
Adicionalmente, a magnificência da composição de A Sociedade do Anel,
praticamente em sua totalidade, põe em nossa mente uma dúvida acima de
qualquer outra: se as partes seguintes resistirão, com tanta sustentação
e qualidade, audições de mais de três horas. Questões a levar em conta e
para que reflitamos um pouco, enquanto desfrutamos de tão magna
composição saída do gênio de Howard Shore.
Gostaria
de
agradecer a ajuda
prestada na elaboracão deste comentário
por
dois
grandes amantes das obras de J. R. R. Tolkien
e
Howard Shore: D.
David Rodríguez
e
D. José Luis Martín.
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