Harry
Gregson-Williams
habitualmente alterna seus trabalhos entre potentes e exóticas
partituras percussivas (Jogos de Espiões, Assassinos de
Aluguel) e divertidas paródias em partituras de animação (Shrek,
A Fuga das Galinhas) mantendo sempre um patente ritmo em sua
instrumentação, o que me parece ser uma tendência atual entre os
iniciantes. Sua tendência ao trato com sonoridades eletrônicas, seu afã
pela experimentação, pela fusão de música contemporânea com sons étnicos
(inspirada, talvez, por sua estadia na África ensinando música às
crianças) e, sobretudo, um polêmico e excessivo comprometimento com os
clichês de seu mentor e amigo
Hans Zimmer, não lhe
tem conferido mais que infâmia e críticas, em muitos casos
injustificadas, que o rotulam com uma personalidade fraca, até então,
incapaz de conquistar o respeito dos aficionados por trilhas sonoras. A
verdade é que ele transcende seu mestre, sendo mais sensível, minucioso
e perspicaz em suas leitura emocionais e dramáticas - observando
atentamente suas nuances em cena, fugindo à música meramente ambiental,
dissociada da cena. Mas também é verdade que falta-lhe uma certa
austeridade, uma certa fidelidade de estilo que nos faça confiar que o
minuto, a faixa seguinte será tão boa quanto a anterior. Uma sobriedade
que talvez a experiência lhe dará. Todavia, seu talento e o espírito de
superação foram capazes de convertê-lo, junto a seu colaborador
habitual, John Powell, em um ícone da música de animação com obras como
Antz, Sinbad e a própria Shrek de Andrew Adamson,
diretor também desta primeira aventura da série Narnia.
Assim, em As Crônicas de Nárnia ele dá continuidade à tradição
britânica através do classicismo das cordas e da orquestração repousada
em elegias como em The Magic of Marciano ou Bridget Jones 2,
adentrado em seguida ao âmbito das superproduções com Cruzada de
Ridley Scott, onde frustrara os que dele esperavam uma demonstração de
independência intelectual e competência individual. Agora o encontramos
em As Crônicas de Narnia: O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa
que diziam ser, desde o seu anúncio, sua grande oportunidade de mudar
toda má impressão que deixara e dizer a que veio. Baseada na aclamada a
obra de C.S Lewis, esta história narra as aventuras de quatro irmãos:
Lucy, Edmund, Susan e Peter, que durante a Segunda Guerra Mundial
descobrem, através de uma passagem oculta em um guarda-roupa, o mundo de
Narnia, no qual se embrenham.
Apesar de não ter lido nenhum dos sete livros da série As Crônicas de
Nárnia, e, portanto, não poder dizer se os diversos problemas que
atravessam esta adaptação para o cinema vieram do material original,
posso falar de seu roteiro enfadonho, previsível, e de sua direção
equivocada. Assim, descrever este filme como um "O Senhor dos Anéis para
crianças" (impulso inicial de qualquer pessoa) acabaria sendo uma ofensa
tanto para a trilogia dirigida por Peter Jackson quanto para os pueris
espectadores que, apenas por serem jovens, não merecem produções, que
apesar de visualmente deslumbrantes, são mal-acabadas como esta. A
previsibilidade do roteiro, no entanto, não é o principal equívoco de
As Crônicas de Nárnia: O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, cuja
maior fraqueza reside na falta de tensão ao longo da projeção. Desde o
início, quando vemos a esquadrilha nazista sobrevoando Londres, o filme
assume um clima de inocuidade que mantém o espectador seguro de que nada
de mau acontecerá – e o fato de ser voltado para o público infantil não
justifica esta atmosfera inofensiva. Mesmo as cenas de batalha falham em
nos levar a temer pela segurança dos heróis, que parecem apenas estar
brincando de guerreiros, cientes de que ninguém os machucará seriamente.
Bem mais longo do que o ideal com seus 140 minutos de duração, esta
primeira parte de As Crônicas Nárnia é cansativa e nada
envolvente.
Pois este é o ambiente de trabalho de Gregson-Williams que, imbuído de
todo logro que este filme demonstra ser, talvez não percebendo-o, acaba
por pecar pelo excesso desde o início - como quando as crianças fogem da
governanta ao som de uma música desproporcionalmente tensa e grandiosa,
mais um exemplo da música superando a obra para qual foi feita. Para
este filme Gregson-Williams compôs a partitura mais ambiciosa, completa,
e em todos os sentidos, bem sucedida de toda sua carreira. Um trabalho
de exuberante riqueza temática, preciosismo melódico, orquestração
original e variada, e, sobretudo, de contrastes, passando de um terno
intimismo a contundentes e espetaculares paisagens de ação com a
preciosa onipresença de coros. Também encontramos seus pontos fracos: há
a importuna introdução de sonoridades eletrônicas e enfadonhas
vocalizações new age que, num filme épico de fantasia, o
bom-senso mandaria evitar.
Introduzirmo-nos no universo musical idealizado por Gregson-Williams é
uma experiência difícil... A consistência de suas músicas em integração
com as imagens é tão importante, que poderíamos dizer que o score
é o encantado Wardrobe deste filme. Se Gregson-Williams não o
tivesse aberto, o resultado final certamente teria sido ainda mais
questionável, pois ao final ele faz de sua música o melhor do filme.
Tematicamente, as crianças são a chave da partitura. Para
descrever suas fragilidades, a dramaticidade por terem sido abandonados
por sua mãe, e incluindo as dúvidas entre os próprios irmãos,
Gregson-Williams utiliza uma bonita, mas triste melodia, que contrasta
com o tema dos Reis. Fato que será primordial nas seqüências de
ação que na prática refletirão seus futuros, seu heroísmo e
determinação. Todavia, o próprio mundo mágico de Narnia também
possui seu próprio tema, assim como, Aslan e sua antagonista,
a Feiticeira Branca, que paira em espírito sob as cenas
ameaçadoras. Em segundo plano, existem ainda os temas da viagem,
associado a um fragmento de sonoridade contemporânea com percussões
eletrônicas e vocalização new age manifestado no decorrer de
jornadas; e de Mr. Tummus, preciosa e comovente melodia
executada primordialmente pelo violino elétrico.
O suporte narrativo do qual se incumbem todos os temas, e não a mera
descrição, é uma das características mais admiráveis e bem sucedidas
deste score de Gregson-Williams... Outro dos múltiplos motivos
pelos quais devemos considerar As Crônicas de Narnia sua melhor
composição até o momento. Passemos pelos principais momentos do score:
“The
Blitz, 1940” (Faixa 01 - 02:32):
Os primeiros compassos
deste álbum se apresentam como uma intensa e dramática Abertura
para percussão e metais sobre o adorno dos efeitos sonoros da
aproximação e ataque de bombardeiros alemães, que ameaçam a população de
Londres durante um de seus múltiplos ataques durante a II Guerra
Mundial. Através de seu tema principal, doado aos metais logo em seu
início, lembramos John
Barry e sua música para os filmes de James Bond. Nesta música nos é
apresenta o tema antagonista utilizado indistintamente durante o
filme sempre que os protagonistas sofrerem alguma ameaça (como
posteriormente ocorrerá durante as aparições de Feiticeira Branca e seus
aliados). Por fim, a evolução temática nos levará ao tema das
crianças, apresentado aqui em sua vertente mais dramática.
“Evacuating London” (Faixa 02 - 3:38):
Encontramos esta música com a evacuação de Londres e a fuga dos irmãos,
a separação de sua mãe e em seguida a viagem de trem das crianças em
busca de um novo lar. Toda seqüência tem início com a apresentação do
tema das crianças em seu invólucro melancólico nas notas mais que
apropriadas de um piano, mas que ainda assim contem a esperança de que
tudo voltará a ser como antes. Com o inicio do main title
inicia-se uma dinâmica e contemporânea passagem lírica na voz de Lisbeth
Scott conciliada com sintetizadores e ritmos eletrônicos, que apesar de
afetivos, são uma intromissão estranha ao ambiente de onde surgem, em
segundo plano, os temas de Narnia e das crianças.
“The
Wardrobe” (Faixa 03 - 02:54):
Aqui encontramos a cena em que a pequena Lucy descobre o guarda-roupa e,
através dele, o mundo de Narnia. É um dos momentos mais mágicos
do filme e certamente do score. Flauta, harpa e sobretudo o piano
que interpreta o tema de Aslan, acompanham Lucy em seu caminho
rumo ao desconhecido. O surgimento do coro, o crescendo das
cordas e a inserção de sinetas, terminam por nos situar em um novo
mundo, pleno de magia; logo interrompida pela aparição de Mr. Tummus (o
fauno).
“Lucy
Meets Mr. Tumnus” (Faixa 04 - 04:10):
A busca de sons
próprios para Narnia levou Gregson-Williams a contar com seu
amigo Hugh Marsh, virtuoso interprete do violino elétrico, para
prover as explicações de Mr. Tummus a Lucy de um ar quase místico
e surreal. É uma preciosa passagem onde o tema de Narnia é
retomado em sua parte final por meio do clarinete e em seguida pelas
cordas e coro (elementos indissoluvelmente unidos durante todo o
score).
“A
Narnia Lullaby” (Faixa 05 - 01:12):
Sem dúvida uma dos pontos altos deste score. Mr. Tummus deseja
adormecer Lucy para entregá-la à Feiticeira Branca, e para isso faz uso
de um instrumento mágico, que Gregson-Williams associa ao som do duduk.
A melodia de claras sonoridades orientais vai crescendo através da
inserção do coro e do maior protagonista da orquestra, a percussão, até
alcançar seu auge sinfônico por meio dos metais - talvez uma metáfora da
evolução dramática e épica do filme.
“The
White Witch” (Faixa 06 - 05:30):
É tempo de nos
dedicarmos ao ambiente musical desenvolvido para a Feiticeira Branca.
Logicamente a atmosfera obscurece, a percussão se mostra mais agressiva,
o coro adota um ar diabólico onde os piores temores se expressão. Uma
dinâmica só interrompida por um interlúdio para flauta em um
ambiente etéreo que antecede um final vibrante e sombrio.
“From
Western Woods to Beaversdam” (Faixa 07 - 03:34):
Para suavizar um pouco a rigidez e agressividade da faixa anterior, se
recorre ao tema da viagem de “Evacuating London”. A estética
new age domina esta primeira parte através das percussões e da
cálida voz de Lisbeth Scott. A segunda parte, em exuberante contraste
com a passagem anterior, se concentra mais no desenvolvimento do tema de
Aslan através da candura das flautas, da nostalgia das cordas e
da nobreza dos metais.
“Father Christmas” (Faixa 08 - 03:20):
Uma das passagens mais surreais do filme se dá com a aparição do Papai
Noel em uma seqüência na qual os protagonistas acreditam estar sendo
perseguidos pela Feiticeira Branca. Gregson-Willians compôs uma preciosa
peça tipicamente natalina com coros, sinetas e cordas que precedem a
entrega de presentes aos meninos, presentes dignos de calafrios - armas!
- refletidos na música por meio do tema de Narnia e de Aslan
interpretado com grande solenidade e nobreza pelo coro e grande
orquestra.
“To Aslan's Camp” (Faixa 09 - 03:12):
Aqui encontramos a
primeira aparição do tema dos Reis por meio de uma emocionante
fanfarra. Em resumo, na seqüência do rio congelado onde Peter utiliza a
espada para salvar a todos. Esta faixa trás um início espetacular e um
breve interlúdio de moderada música em que encontramos novamente
o tema de Narnia seguido de um momento quase místico com a
aparição de Aslan. A faixa se finaliza com uma nova referência ao tema
dos Reis, neste caso em uma variação mais nobre e menos dinâmica
que o começo da peça.
“Knighting Peter” (Faixa 10 - 03:48):
Traz um início lento com predomínio do tema de Aslan passando a
uma breve, mas intensa, passagem de ação que coincide com a cena do
enfrentamento entre Peter e os Lobos. Seu triunfo, descrito musicalmente
com moderação, leva a uma nova apresentação do tema das crianças
por meio da flauta, no momento em que Peter é nomeado cavaleiro por sua
destreza e valia com a espada. Será ele quem guiará Narnia ao
glorioso futuro que o espera.
“The
Stone Table” (Faixa 11 - 08:06):
Transcendente passagem
do filme cujas conotações religiosas perpassam todo o ambiente. Vemos
então a figura da Aslan, sacrificando-se pelos seus, permitindo ser
executado em público. A cerimônia pagã dirigida pela Feiticeira Branca e
acolhida quase que lascivamente por seus súditos é um dos momentos chave
deste score onde se elabora uma peça dominada pelas percussões,
as vozes étnicas (tibetanas), com a orquestra a todo o instante
incrementando a tensão ao compasso de um ritmo que vai em crescendo.
Este tempo será a chave do momento da execução, com a voz de Lisbeth
Scott evocando o drama que está por vir. Uma aceleração da música que
leva a tensão a limites imprevisíveis e de repente tudo cessa. O tempo
pára e o tema de Aslan se transforma em uma dolorosa elegia para
cordas. É o lamento pela morte do líder transmitido ao acampamento pelas
árvores através de suas folhas, e a música através da percussão
acompanhada por uma versão grave e obscura do tema dos Reis.
“The
Battle” (Faixa 12 - 07:08):
Uma das razões para
este score ser lembrado é sem duvida por esta peça para orquestra
e coro. Uma das maiores junções música-imagem conseguidas pelo
compositor britânico ao longo de sua carreira. Uma longa faixa de ação
de sete minutos, de ímpeto contido e solene, apresentando o tema dos
Reis em clara metáfora da preocupação que invade os protagonistas
antes da parte final e definitiva da batalha em campo aberto ante o
exército da Feiticeira Branca. Contudo, este ímpeto não será mais que um
prelúdio de uma sucessão de crescendos de um fabuloso tema
perfeitamente compassado que alcança seu clímax justo quando coro e
orquestra se fundem para elevar o misticismo e a magia da batalha, a
bravura dos combatentes, o sacrifício do indivíduo pelo grupo. Convém
destacar um elemento, a princípio questionável: o uso de uma base
rítmica eletrônica que vai intocada por vários compassos por sob a
orquestra e o coro com certo ar das antigas composições da extinta
Media Ventures.
“Only
the Beginning of the Adventure” (Faixa 13 - 05:32):
Não é o “Throne Room
and finale” de Star Wars, mas é uma passagem musical muito
agradável utilizada na cena final no Castelo. É uma faixa que na
realidade é uma suíte não declarada que tem início com o tema das
crianças, em seguida de Aslan e o de Narnia, e o
evidente e necessário tema dos Reis, já que é o momento da
coroação dos quatro irmãos. A vaga referência ao tema de Mr. Tummus,
no reencontro deste com Lucy, não será mais do que um pretexto para que
o tema dos Reis de Narnia se desenvolva brevemente antes de seu
desenlace final.
Como “ônus”, encontramos nas quatro faixas finais uma avalanche de
canções originais, sendo que a última, “Where”, apresenta um trecho do
tema das crianças interpretada por Lisbeth Scott, que nos últimos
anos também serviu a John
Williams em Munique e John Debney em A Paixão de Cristo.
Por fim, deve-se dizer que o trabalho de Gregson-Williams neste As
Crônicas de Narnia não se limitou só a escrever o score, mas
a criar toda uma realidade ambiental, através de texturas ousadas e
ritmos patentes, que o filme por si seria ineficiente em criar. O vigor
que reclamam faltar-lhe nesta partitura, não o encontro em falta, sendo
que a preponderância ainda maior de seus elementos musicais poderia soar
excessivo, até mesmo megalomaníaco, e em alguns momentos o é, pois que o
filme “derrapa" e não lhe honra. Talvez ainda fiquemos esperando por uma
manifestação mais clara da austeridade de sua música, mas também ele
ficará esperando pela oportunidade de se embrenhar num filme de
qualidade que realmente o desafie. No entanto, podemos dizer que neste
score ele deu mostras efetivas de seu talento. |