A confecção de ricas partituras e a
duradoura colaboração com o diretor Spike Lee marcam a profunda arte e
a carreira deste compositor negro dentro do cinema americano. Nos
tempos atuais, torna-se tarefa difícil encontrar um compositor para
cinema que possua real identidade criativa. Alguém que não esteja
filiado à escola da mesmice. Um dos músicos mais completos (possuidor
de rica formação como trompetista, compositor e condutor) do presente
contexto musical cinematográfico e, principalmente, detentor de uma
forte e requintada identidade, é Terence Blanchard. Colaborador
habitual de Spike Lee, notabilizou-se exatamente por seus trabalhos ao
lado do articulado diretor. Sua música pode ser entendida como fio
condutor de um pesado lirismo e do tom refinado e pomposo peculiares
às películas de Lee lançadas ao longo da década de 90.
O início e o jazz
Iniciado na música por Joseph Oliver, seu pai, aos cinco anos de
idade, Terence Blanchard começou com o piano. No entanto optou pelo
trompete depois de ter visto, alguns anos mais tarde, uma banda de
jazz apresentando-se em sua escola. Apaixonou-se pelo instrumento,
tocado por Alvin Alcorn, e decidiu que fazer aquilo era o que gostaria
por toda a sua vida. O músico Blanchard (13/03/1962) nasceu, cresceu e
se fez como artista na negra e efervescente New Orleans, capital do
jazz. Lá estudou no New Orleans Center of Creative Arts. Contudo
foi em New York, onde encontrou nomes sagrados do estilo, como o
baterista Art Blakey (com quem tocou no lendário conjunto Jazz
Messengers), que o compositor pôde expandir de fato os horizontes
de sua carreira. Nesse tempo, fez amizade com outros dois músicos
emergentes do jazz do início da década de 80, os irmãos
Marsalis: Brandford (que mais tarde compôs temas de jazz para
Spike Lee em "Mo' Better Blues", aliás, acompanhado do próprio
Blanchard) e Wynton. Obteve destaque também em projetos realizados
junto ao saxofonista Donald Harrison. Além de amplo aprendizado no
jazz, Blanchard recebeu importante formação erudita.
O estilo
Terence
Blanchard imprime um estilo singular dentro do cinema moderno.
Singular pois, não raro, remete à maneira de tratamento e ambientação
musical característica do cinema americano clássico, das décadas de 40
e 50. Dessa forma, pode-se dizer que o compositor (que também é fã de
Quincy Jones,
Goldsmith e
Alex North), embora
detentor de marca própria, é um saudosista. Suas composições soam como
se fossem imensas figuras - desenhadas por meio de uma apurada gama de
cores sonoras e de um código melódico pouco usual e bastante refinado.
São geralmente lentas, vultuosas e demonstram uma combinação entre o
caráter impressionista (que parece provir, dentre outras fontes, de
sua origem no jazz e do conhecimento sobre o estilo) e
influências da tradição mais essencial da grande música americana.
Podem ser percebidos, muito nitidamente, alegorias e conceitos da
linguagem colorida e exuberante de Aaron Copland.
Spike Lee
A
concepção musical de Terence Blanchard possui uma múltipla função nos
filmes de Spike Lee:
- Gerar um sentido emocional e de lirismo grandiloqüente para os
traços da poética cinematográfica de Lee. Os traços dessa poética são
fortes, por vezes brutais. Assim, a música tem a propriedade de
anestesiar ou temperar a linguagem do diretor. Às vezes, chega mesmo a
santificá-la;
- Oferecer um efeito de contraste à obra de Lee, em um primeiro plano.
O estilo do compositor, em uma leitura inicial, não seria aquele mais
enquadrado dentro dos ambientes da New York retratada pelo diretor.
Uma New York das questões humanas intrincadas, da tensão racial; uma
New York real e violenta, nas ruas e nos sentimentos das pessoas que
lá vivem. A sobreposição da música à película e, conseqüentemente, o
contraste criado, portanto, são capazes de produzir uma grande
combustão de sentimentos.
Entretanto, em uma segunda leitura, pelas próprias raízes da música de
Blanchard e também por suas características orquestrais, a mesma não
deixa de ser correspondente direta a esses delicados e ricos mundos
filmados com intensidade por Lee. Como outra funcionalidade, temos a
de dar aos filmes do diretor uma conotação épica-urbana, grandiosa.
As selvas urbanas
Uma obra memorável, tanto para a cinematografia de Lee quanto para a
carreira musical de Blanchard (sendo que é a primeira partitura para
cinema assinada por ele), é "Jungle Fever" ("Febre da Selva"), de
1991. As orquestrações de Blanchard surgem aqui com a mesma sutileza
dos passos de um grande artista do circo andando com maestria sobre a
corda bamba. O compositor enlaça os diálogos entre os personagens de
Annabella Sciorra e Wesley Snipes de uma forma que a música parece
estar sagaz e lentamente a envolvê-los. A cena que se passa no
escritório é exuberante e fala bem sobre isso. Outro grande destaque é
a composição com o coro de meninos do Harlem. Peça angelical, embora
envolta por uma harmonia complexa e tensa, características, aliás,
recorrentes dentro da obra do compositor. Bela arquitetura musical.
Em
"Clockers" ("Irmãos de Sangue"), os jovens negros vinculados ao
tráfico de drogas - vivendo uma malandra e ilusória vida de pequenos
gângsteres - e a realidade daquela vizinhança (de tiros, brincadeiras
de criança, mais tiros e bicicletas) também recebem luz das
composições de Blanchard. O músico, como sempre, auxilia Lee no
processo muito particular de estilização da obra. O faz acompanhando
os passos, literalmente, da mãe zelosa, aflita pelo destino do filho
que vai descobrindo as chamativas portas da vida do crime. Acompanha
também os passos do próprio filho e também do personagem principal do
filme, referência do garoto naquele aparentemente mágico mundo
bandido. Marca a ação e os sentimentos muitas vezes contraditórios
desses personagens, com acordes preciosos e liricamente tensos. Uma
cena que realiza-se em meio a um grande tema de Blanchard em "Clockers",
é aquela em que a mãe, furiosa, segurando o menino pelas orelhas, vai
tirar satisfações com os jovens criminosos do bairro. Sua ira deve-se
ao fato de ter visto no filho um corte de cabelo no mínimo
extravagante. O corte de cabelo, segundo ela, era fruto da má
influência daqueles "desajuizados". Blanchard escreve, por meio da
composição, uma profusa epopéia de sentimentos dentro desse simples
retrato do bairro negro em um dia nublado comum. Essa epopéia musical
parece transcender, voar muito além do que estaria originalmente
escrito naquela cena. O aparentemente simples torna-se grandioso. A
marca do compositor poderia ser sintetizada exatamente aqui.
Dimensão musical
A música de Blanchard parece ter uma curiosa conotação panorâmica. É
possível perceber nela, por meio do denso sentido de harmonia e de
orquestração, grandes paisagens. Essas paisagens têm consigo
verdadeiros, embora subjetivos, efeitos de dimensão e perspectiva. A
música parece, assim como a câmera de Lee, estar sempre envolvendo de
cima as ações e os quadros filmados, brincando com a própria realidade
imposta pelos mesmos. Os elementos da ação, personagens, cenários e
afins, tornam-se títeres nas mãos e nos sutis movimentos de Blanchard.
Esses movimentos contribuem para a produção de um certo estado de
catarse, não incomumente evocado pelos espaços de realidade engenhados
por Lee.
Mais verões de Lee e Blanchard
Outros
notáveis momentos da colaboração entre Spike Lee e Blanchard estão em
"Malcom X", um filme com imponentes e bem característicos retratos
musicais, "Bamboozled", aclamado, e "O Verão de Sam", onde Blanchard
ajuda a tornar viva a experiência-filme de Lee de reconstruir uma
conturbada Nova York do final da década de 70. O verão mais violento e
confuso da história da cidade (filmado por Lee com olhar por vezes
sarcástico), o de 77, recebe cores e pinturas típicas do compositor,
entretanto, marcadas por linguagem e sentimentos mais tensos e
dramáticos do que o normal em sua obra. Entre as fitas que também
marcaram o trabalho em conjunto dos dois artistas, estão "Crooklyn" e
"Get On The Bus". Em "He Got Game", Lee experimentou. Blanchard ficou
de fora para que o diretor forjasse cada fotograma de seu filme
inspirado pela obra de Aaron Copland. A Copland, na verdade, é dada a
própria condução da fita. A premissa de Lee era conceitual: o filme,
rebuscada homenagem à cultura popular americana, mais precisamente ao
basquete, teria estética e musicalmente a grife do compositor mais
essencial dos valores e da cultura da nação, ou seja, Copland. O mais
interessante é que, de alguma forma, Blanchard não esteve
completamente à parte do filme, pois o cerne de sua obra remete, e
muito, à obra de Copland. Pelo trabalho de 2002, "The 25th Hour", mais
um filme de Spike Lee, Blanchard foi indicado ao Globo de Ouro como o
compositor da melhor partitura.
Fora do mundo Lee
Além
dos projetos em que contribui com Spike Lee, Blanchard também está
presente em recentes trabalhos de outros diretores, como Michael
Cristofer, Steve Carr, para quem musicou "The Next Friday", e Gina
Prince-Bythewood. Em "The Next Friday", Blanchard realizou um trabalho
não tão memorável, mas que chega a atingir seu objetivo dentro do
filme. Para Prince-Bythewood, escreveu a música do ótimo "Love &
Basketball". Com Cristofer, trabalhou em "Gia" e "Original Sin", sendo
o último um trabalho diferenciado, onde o compositor aparece mesclando
elementos afro-cubanos (o enredo da fita desenvolve-se em Cuba) à sua
estética orquestral.
Como
trompetista, o músico de New Orleans pode ser considerado um dos
maiores nomes do jazz atual. Blanchard foi indicado ao Grammy
em 2001 e eleito em 2000 pelos leitores da Downbeat (importante
publicação do gênero) como artista do ano e melhor trompetista.
Filmografia de Terence Blanchard,
cortesia de Internet Movie
Database