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Sobre Meninos e Lobos (Mystic
River, EUA, 2003)
Gênero: Policial
Duração: 137 min.
Estúdio: Warner
Elenco: Sean Penn, Tim Robbins, Kevin Bacon, Laurence Fishburne,
Marcia Gay Harden, Laura Linney, Kevin Chapman, Tom Guiry
Compositor: Clint Eastwood
Roteiristas: Dennis Lehane, Brian Helgeland
Diretor: Clint Eastwood
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Divergências sobre a dor
da perda
Nova realização de Clint Eastwood, mais
do que um filme policial, é um admirável drama psicológico que extrai do elenco
grandes interpretações
Eastwood não é daqueles que inserem um
crime no filme só para fazer um suspense qualquer. Geralmente, quando há o
crime, ele é o estopim para uma outra série de discussões, tanto da própria
natureza do crime quando da repercussão dos mesmos nas vidas dos próximos da
vítima.
Sobre Meninos e Lobos (o título
pode até ser interessante, mas desconsidera o Mystic River do original,
personagem importantíssimo na história) é aparentemente uma história policial.
Isso porque há o crime, ninguém sabe como ele ocorreu, tudo aponta para um
suspeito e temos, no fim, a revelação surpreendente. Mas isso é apenas um
pretexto para Eastwood construir uma história amarga que nem almeirão. Talvez
mais.
Temos três amigos de infância marcados por um acontecimento envolvendo seqüestro
e abuso sexual com um um deles. Na idade adulta, a filha de Jimmy (Sean Penn) é
assassinada. Sean (Kevin Bacon), hoje policial e recentemente abandonado pela
mulher, começa a investigar o caso, no qual todas as suspeitas apontam para Dave
(Tim Robbins), aquele que havia sofrido o abuso. Querendo fazer justiça com as
próprias mãos, Jimmy põe alguns amigos à caça do assassino. Obviamente, tudo
terminará da pior maneira o possível.
É interessante notar como a trama do assassinato, que aparentemente conduz o
filme, vai pouco a pouco se tornando apenas uma estratégia de Eastwood para
tocar em assuntos cada vez mais delicados. O mais interessante é que ele não tem
a mínima intenção de amenizar o processo, tornando o filme cada vez mais denso.
O desfecho é fantástico, e o filme despenca (no bom sentido). Não pude deixar de
lembrar de Mulheres Diabólicas (La
Celebration), de Claude Chabrol, em que a crueldade da cena final é
assustadoramente macabra. A cena do desfile é macabra. Temos a excelente Marcia
Gay Harnor correndo pelas ruas a chamar pelo filho. Temos o sorriso solitário e
vingativo de Laura Linney (o que é a cena dela com o Sean Penn antes do desfile,
quando os dois estão no quarto? Que coisa doente! Um filósofo falou no caderno
Mais!, da Folha de São Paulo, que aquela cena aponta para a ideologia da
doutrina Bush. Não creio que tenha sido intencionalmente feita de tal maneira,
mas acho que ela está mesmo impregnada de tal doutrina. Afinal das contas,
Linney diz que algo deve ser feito, mesmo que exista inocência da parte do
suposto agressor, já que a ordem deve ser sempre mantida.) Temos o silêncio
consentido de Kevin Bacon. E temos o homem que fez a coisa certa, Sean Penn.
É na profundidade dos personagens que
Sobre Meninos e Lobos ganha sua força. Todos os atores estão excelentes,
particularmente Sean Penn e a fantástica Laura Linney (ela e Cate Blanchett são
os seres mais ecléticos da atualidade). A sensação é que os atores construíram
camadas de complexidade, e a cada nova cena do filme uma camada é retirada.
Quando chegam os créditos finais, o que sobra é a parte podre de cada um, que
Eastwood mostra sem qualquer tipo de filtro demagogo. Na realidade, a cena do
desfile faz uma espécie de resumo da doxa do filme: trata-se de uma obra sobre
perda. Mas existe o dúbio sentido de indiferença/compaixão. Qual é o limite da
compaixão? Quando é necessário ser indiferente? Quando a indiferença é auxílio,
e quando a compaixão é crueldade?
Eastwood disse que o filme trata da perda da inocência. Talvez seja mais que
isso. Talvez ele trate de como a perda da inocência pode refletir na vida de
todos. E de como a amargura acaba sempre predominando. Sua direção nervosa,
aparentemente fria (mas com alguns travelings desnorteantes) confirmam a
necessidade da distância, mas a instabilidade de tudo aquilo que se vê. O filme,
um primo distante de Entre Quatro
Paredes (um filme extremamente injustiçado, em que a necessidade da
vingança, de matar o opressor, é ainda maior que a dor da perda em si), é
sabiamente maduro em suas escolhas. Ao mostrar sem medo as mazelas de seus
personagens, a obra ganha força dramática. Coisa boa hoje em dia.
Além disso, existe uma insistente fotografia extremamente clara, uma luz
constante branca que atinge o rosto dos personagens, enquanto o resto da tela é
escuridão. Excelente recurso expressivo; em outras palavras, vemos todos de cara
limpa, sem mais nada a não ser o rosto que denuncia tudo. Percebe-se também, com
tal recurso, uma espécie de sugestão confessional, ou até mesmo a idéia de que
estão sendo submetidos a um interrogatório ou vistoria. Eastwood, sempre
esperto, sabendo que, como informa o título, o rio é o grande tema do filme (os
fantasmas são jogados no rio, que está sempre presente), inclui várias tomadas
aéreas do mesmo, intercalando-as com a narrativa. É como se ele dissesse: preste
atenção no rio. Não se esqueça dele.
Mystic River não deve fazer muito sucesso, já que não é um drama belo nem
uma história policial eficiente. Aliás, considerá-lo um filme policial é um erro
que pode resultar em decepções. Àqueles de coração aberto, que não se preocupam
com o quem matou e sim com o significado das dores da morte (aparente ou real,
atenção à fala desgastada, mas precisa, de Robbins), trata-se de um grande
filme. E se há divergências dentro da dor da perda, melhor ainda. Dessa maneira,
abstemo-nos da idéia tonta de que temos que torcer por algum personagem. Filme
não precisa de carisma. Precisa de qualidade.
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