Não
dá para falar de “Psicose” (Psycho, 1960) sem mencionar sua trilha
sonora. O filme de 1960, dirigido pelo cineasta inglês Alfred Hitchcock, se
tornou um marco do gênero suspense. A música do filme é um dos pontos mais
expressivos deste trabalho. É interessante percebermos que
Bernard Herrmann, o
compositor, deixou de lado os complexos arranjos e a “grandiosidade” das
orquestras sinfônicas (tão apreciados pelos clássicos hollywoodianos das
primeiras décadas do cinema sonoro) em prol de um pequeno grupo de câmera,
composto por instrumentos de cordas friccionadas. Bernard Hermman compôs,
antes de
“Psicose”,
trilhas de filmes como “Cidadão Kane” e “Soberba”, do cineasta Orson Welles,
que o convidou para trabalhar em Hollywood a partir de 1935. Desde muito cedo,
o compositor revelou enorme talento musical. Aos vinte um anos compôs peças
sinfônicas para o rádio, e pouco depois se tornou regente da CBS.
Trabalhou em oito filmes de Hitchcock: “O Terceiro Tiro” (1955), “O Homem que
Sabia Demais” (1956, segunda versão), “O Homem Errado” (1957), “Um Corpo que
Cai” (1959), “Intriga Internacional” (1959), “Psicose” (1960), “Os Pássaros”
(1963), onde foi consultor de som, e “Marnie, Confissões de uma Ladra” (1964).
O compositor chegou a compor a trilha de “Cortina Rasgada”, que foi rejeitada
por Hitchcock.
A
instrumentação do maestro Herrmann atingiu uma dramaticidade e expressividade
essencial para compreensão do espetáculo fílmico. A textura da música é
compatível com a textura dramática do filme. Certamente não se conseguiria
esse resultado se utilizando de grandes orquestras e arranjos complexos. A
música não possui muitas notas e nem uma construção rítmica muito variada,
como a maioria das músicas de cena da época clássica. A construção da obra
como um todo é complexa, mas não os elementos internos da escrita
musical. O som em
“Psicose”
é construído a partir da densidade psicológica da obra. Torna-se praticamente
impossível esquecermos alguns trechos de sua música penetrante. Basta citar o
trecho dos violinos na reverenciada “cena do banheiro”. O fragmento
musicalmente é simples: os violinos são friccionados fortemente na mesma nota
com a célula rítmica repetitiva, enquanto os outros instrumentos (cellos
e baixos) fazem o contraponto com notas mais graves, que vão ralentando.
Mesmo o fragmento musical sendo simples, ele fica reverberando em nossa
consciência. A intenção do diretor era nítida: ele queria que este assassinato
ficasse marcado por todas as outras seqüências do filme. Em suas entrevistas
com o crítico Truffaut, Hitchcock afirmou ter resolvido fazer o filme a partir
da idéia deste assassinato, baseado no romance de Robert Bloch. Esta
seqüência do banho é suficientemente violenta para não a esquecermos e, na
medida em que o filme vai sendo projetado, as seqüências se tornam menos
agressivas. Este foi um dos motivos que levou Hitchcock a filmar em preto e
branco, pois acreditava que havia muito sangue na tela para ser filmado em
cores.
É interessante percebermos o quanto o diretor insistiu no roubo de quarenta
mil dólares efetivado por Marion. Pura fantasia e jogo com o público, para que
este não esperasse a repentina morte da atriz “principal”. Fato que não é
comum, a estrela morrer antes do cinqüenta minutos de projeção. A música de
Bernard Herrmann possui uma construção de intervalos musicais que provocam
medo no espectador. Obviamente, o compositor não conseguiria tal efeito com um
sistema harmônico (tonal) estável, com os trítonos devidamente resolvidos. A
harmonia é sem resolução, o que está ligado com a idéia de instabilidade da
psique de Norman Bates. Assim como a música do filme não segue a estrutura
“tensão/repouso”, salvo em raros momentos, todos os outros elementos
estilísticos do filme compactuam com esta idéia. Lembremos que a personalidade
de Bates é dupla, assume posturas diferentes e os movimentos do personagem são
inquietantes. O silêncio, muito presente no filme, é um recurso que gera
contraste com os momentos de saturação sonora. Não significa, na maioria das
seqüências, repouso. O filme possui uma unidade dramática, estética. Discutir
sua trilha não significa isolar os outros importantes componentes como a
fotografia, a montagem, cenário, atuação dos atores, dentre outros. A trilha
sonora é mais uma contribuição para se chegar a um resultado artístico
expressivo. Com isso, não queremos diminuir o caráter inventivo da música de
Herrmann, pois “A música de cena não é música em estado puro, mas em estado
dialógico, o que não impede de ter a sua porção de livre especulação” (TRAGTEMBERG,
Música de cena, pág. 89).
“Psicose” possui, de uma forma geral, dois blocos dramáticos delineados: o
primeiro antes da morte de Marion e o segundo depois, quando Sam e Vivien
iniciam as investigações sobre o desaparecimento dela. A “cena do banho” está
no meio desta divisão de blocos dramáticos. O maestro americano foi sensível a
esta mudança. Sua música serviu como elemento da narrativa, intensificando as
nuanças do roteiro, em alguns momentos dramáticos, e em outros funcionando
como contraponto. Na seqüência da fuga de Marion a trilha se intensifica e o
andamento se torna mais rápido. Em alguns planos, a música fica sincronizada
com elementos da própria cena. Podemos perceber isso no momento da chuva,
quando o pára-brisa do carro se movimenta na pulsação rítmica das notas
musicais. Certamente, o compositor fez a decupagem sonora a partir do objeto
da cena, no caso o pára-brisa. No segundo bloco (após as facadas em Marion) a
música assume uma função mais psicológica do que reforço. Não que esta
desempenhasse uma postura meramente de reforço no primeiro bloco e uma função
somente psicológica no segundo. É uma questão de quantidade e não de
qualidade. Esta mudança não anula a unidade estética da película e é
compreensível: a intenção dramática do filme foi alterada, uma vez que não
estamos mais diante da trama do roubo de Marion, mas do seu estranho e
repentino assassinato. A narrativa musical, assim como o roteiro, nos deu um
“susto” no momento do crime. Não é a toa que momentos antes das facadas, a
música pára com o intuito de valorizar a sonoplastia: o som “relaxante” e
contínuo da água que sai do chuveiro é interrompido por uma melodia estridente
e perturbadora.
Já se mencionou tanto a cena do banho de Marion, que se faz necessário uma
análise mais detalhada dos elementos envolvidos na mesma. Um banho, todos hão
de concordar, é um dos momentos mais relaxantes do nosso dia (principalmente
no caso de Marion que vinha de uma fuga). Porém a condução de Hitchcock nos
surpreendeu: o banho foi o instante fatal e mais violento de todo o enredo.
Notemos que a música entra com o abrir das cortinas, como se fosse iniciar um
espetáculo circense, e os violinos tocam (glissandos) notas fortíssimas
(molto sforzato) no registro agudo. Os sons se (con) fundem com os
gritos da atriz. Vejamos algumas conexões interessantes que compõem esta
paisagem sonora:
Relação entre a trilha
sonora e a faca – Em alguns planos o ritmo das punhaladas está sincronizado
com o ritmo das notas agudas do violino. Além disso, há uma relação com a
textura da faca. Da mesma forma que a faca é bem fina as notas são bem agudas.
A intensidade das punhaladas é reforçada pelas arcadas intensas dos violinos.
“São os acordes musicais que fazem o corte no corpo de Marion”, nos disse
Heitor Capuzzo em seu trabalho “Alfred Hitchcock: o cinema em construção”;
Relação entre a trilha
e Marion – Bernard Herrmann simbolizou musicalmente os gritos de Marion nas
notas estridentes executadas pelo violino. A respiração da atriz, cada vez
mais lenta, foi simbolizada pelas notas graves que sofrem uma queda de
andamento e ralentam junto com a pulsação dela. O tom grave
também reforça a atmosfera de gravidade do crime;
Relação da trilha com
Norman Bates - O salto brusco do agudo para o grave nos remete a idéia de
dupla personalidade de Bates que, assim como a melodia, oscila entre dois
pólos. Notemos, entretanto, que esses dois pólos não são repulsivos, pois
dialogam: tanto a mente do psicótico como as duas vozes melódicas. Os desenhos
melódicos ressaltam a confusão mental do personagem.
A
sonoplastia valorizou muito o som construído para representar as facadas.
Percebemos o quanto este som, ampliado na mixagem, contribui para reforçar a
dramaticidade da seqüência. A montagem desta seqüência também contribui
decisivamente para a moldura dramática e recortada da seqüência. Articular os
planos de maneira rápida resultou em um procedimento que intensificou o horror
da cena e imprimiu um ritmo eficiente ao filme. Normalmente uma cena de um
banho é filmada com poucos planos e a articulação destes se dá em um ritmo
lento, para demonstrar a tranqüilidade do ato de banhar-se. Contudo este não
era um banho comum, o ritmo da montagem denunciava isto. Um fato curioso é que
nesta cena de apenas quarenta e cinco segundos foram utilizados setenta
planos, filmados em sete dias.
Ainda nos remetendo a este momento do filme, há uma
correlação timbrística curiosa e sutil. O timbre e a intensidade da melodia
dos violinos nos fazem lembrar do canto estridente de algumas aves. É
importante lembrarmos que em cenas anteriores foram mostradas aves empalhadas
na sala de visitas de Bates e imagens de pássaros no quarto de Marion. Sobre
este assunto Hitchcock nos disse, em suas Entrevistas
(1986) com Truffaut:
“Os pássaros”
empalhados me interessam muito, como uma espécie de símbolo. Naturalmente,
Perkins se interessa pelos pássaros empalhados porque ele mesmo empalhou sua
mãe. Mas há um segundo significado, com a coruja, por exemplo: essas aves
pertencem ao reino da noite, são espreitadoras, e isso afoga o masoquismo de
Perkins. Ele conhece bem os pássaros e sabe que está sendo vigiado por eles”.
(pg. 281)
A música, então, representou o som produzido
pelos pássaros, apoiando e enriquecendo a intenção simbólica a que o diretor
se refere acima.
Um momento muito musical é a cena em que Normam
limpa os destroços do crime. A sonoplastia valoriza cada movimento do ator, a
música silencia neste instante. Aliás, um silêncio muito significativo, pois é
o tempo em que se inicia um novo bloco dramático. A detalhada limpeza
simboliza o recomeçar desta nova trama. A música, desta forma, cala e a
sonoplastia impera, para que possamos reconstruir tudo a que assistimos antes.
Bates também precisa de um tempo para reorganizar sua mente. O trabalho com o
som “não-musical” (grosso modo) foi desenvolvido com um intuito artístico, não
só como mera tentativa de reproduzir o som “real” dos elementos em cena. É
recorrente na filmografia hitchcockiana a rigorosa elaboração dos sons
diegéticos. Filmes como “Os Pássaros” (The Birds, 1963) e “Janela
Indiscreta” (Rear window, 1954), possuem um mundo sonoro particular que
extrapolam o real e atingem o poético. Em “Psicose” percebemos a valorização
do “ruído” do envelope com dinheiro roubado. Sabemos que um envelope comum não
projeta um ruído tão forte, porém lembremos que Hitchcock quis reforçar a
idéia do roubo para jogar com o público. O “ruído” serviu como um elemento
reforçador da textura dramática da cena.
Bernard Herrmann, em algumas seqüências, adotou
um “ponto de escuta” a partir de elementos do cenário. Vejamos a casa de
Normam Bates quando ela está enquadrada. A fotografia é escura e a música cria
uma ambientação fantasmagórica e sombria (os intervalos dissonantes denunciam
isso). Hitchcock optou por uma arquitetura interessante: a casa é vertical e o
motel horizontal. Isto dá uma dimensão de grandeza e visibilidade para a casa
(o enquadramento em contra-plongé reforça a idéia). A música dialoga com esta
intenção estética. Ao nos mostrar a casa, a música é pautada com notas agudas
e longas ao passo que o motel é pautado, em alguns momentos, com notas mais
graves. Percebamos a conexão: casa-mais alta/ nota mais aguda; motel-mais
baixo/nota mais grave. A cena que Normam sai de sua casa para limpar o sangue
do crime, percebemos tal conexão mais nitidamente. O personagem sai de casa
correndo e ao abrir a porta do motel, se depara com o corpo de Marion. A
música percorre uma extensão que vai do agudo para o grave. A nota mais grave
corresponde ao momento em que Normam abre a porta. A situação,
recordemos, também é grave, pois sua “mãe” cometeu um crime.
Um
outro ponto importante a ser discutido é a personificação da casa de Bates. A
montagem interna, a fotografia, a música, todos estes elementos contribuem
para que a casa se torne um personagem importante. Este recurso Hitchcock
levou além em “Rebecca: A mulher inesquecível”, um de seus filmes. Em
“Psicose”,
a familiarização do público com a trama do filme, corresponde com cada parte
que conhecemos da arquitetura da casa. Primeiro vemos a casa pouco iluminada e
em plano geral, depois conhecemos uma parte de dentro (na seqüência da morte
de Alborgast) e conhecemos as partes mais intimas do casarão: o quarto da mãe
de Bates e do psicótico, quando Lila Crane entra na casa para investigar o
destino de sua irmã. No celeiro ela descobre toda a trama (nós espectadores
também). Bernard Herrmann utilizou uma escala cromática descendente quando a
irmã de Marion desce até o porão. Neste local ouvimos a nota mais grave da
escala. A música nos dá a noção de profundidade na medida em que ela soa mais
agudo na parte alta da casa (o inicio das escadas) é mais profundo, grave, na
parte mais baixa da casa (porão). O leitmotiv ligado a Norman se
repete, pela última vez, no final da seqüência em que descobrimos as duas
personalidades de Bates. Curiosamente, a maioria das marcações dos trechos
musicais foi feita a partir do ato de abrir/fechar portas. As marcações
começam sutilmente, o som e a imagem parecem estar tão dissolvidos um no
outro, que na verdade os percebemos como um mesmo fenômeno. A marcação da
música a partir do ato de abrir porta é muito sugestiva. Pode representar a
passagem de um estado de espírito para outro. A porta é o limite entre duas
ambientações diferentes: o que percebemos de um lado e de outro (geralmente,
correspondem dois enquadramentos diferentes). A psique de Normam é da mesma
forma, está no limite de dois modos de comportamento, com diferentes
ambientações. O nosso foco não é discutir, de forma direta, tais simbologias.
Porém queremos mostrar que Herrmann construiu sua música a partir da concepção
estética geral do filme. Isto nos mostra que os grandes compositores de cinema
não encaram a música como um mero adereço da imagem. O som no cinema é um
elemento de construção rigorosa, que exige do músico um estudo do filme e a
sua participação desde a elaboração do roteiro, se possível. Esta concepção de
trilha vigorou principalmente no cinema moderno, mas o fato é que muitos
trilheiros continuam construindo trilhas medíocres, ainda centradas no estilo
das grandes orquestras do cinema mudo. Sem retirar o valor do cinema mudo, é
importante admitir que a música desta época servisse mais para “tampar buraco”
do que como elemento estético.
A seqüência em que o detetive Albogarst morre, merece um pouco mais de
atenção, no que se refere aos seus aspectos musicais. É necessário fazermos um
pequeno resumo, para melhor entendermos a decupagem das cenas:
Albogarst é um detetive que procura saber sobre o destino de
Marion. Ele já havia interrogado Norman e percebeu sua insegurança ao
mencionar o nome de sua mãe, Senhora Bates. O detetive sabia que na casa
certamente havia a chave para descobrir a trama, pois interrogando a mãe de
Bates poderia coletar informações importantes sobre a moça desaparecida. Eis
uma cena tipicamente
hitchcockiana, com um suspense gerado pela possibilidade de descoberta de toda
a trama construída durante o filme. Nela, vejamos
como a música foi trabalhada:
Albogarst abre a
porta do casarão - A música sofre uma pequena pausa, preparando para as
fortes notas que virão. As notas dentro da casa são longas e fracas, dando a
idéia de continuidade das tomadas e avisando que algo estar por vir. Estes
recursos que, de certa forma, são comuns, nas mãos de Hermman ganham uma
dimensão psico-emocional grande. É um princípio da música de cena em Herrmann:
poucos recursos para um máximo de resultados;
O detetive sobe
vagarosamente as escadas com um olhar de inocência - A música é composta
por uma nota que cresce sutilmente à medida que ele sobe os degraus. Lembremos
que os degraus são elementos muito significativos dentro da cenografia
hitchcockiana. É o momento de grande suspense, de ameaça. É o instante em que
a música cresce e que o enquadramento em primeiro plano nos deixa mais
próximos da dramaturgia da cena;
Plano de detalhe da
porta do quarto de Senhora Bates abrindo - A música cresce em sincronia
com o abrir da porta. A nota neste momento é mais grave do que a do plano
anterior, pontuando a presença do psicótico. A fotografia fica mais clara à
medida que a porta abre, ou seja, a iluminação fica mais intensa, junto com a
nota musical;
Câmera no alto -
O assassino sai do quarto com a faca – A música repete o mesmo leitmotiv
da cena do banho de Marion. As fortíssimas notas do violino revelam a presença
do assassino, já que em cenas anteriores foi feito à associação: momento
culminante do filme (punhaladas), momento culminante da música (mais tenso)
acudíssimas notas tocadas fortemente;
Plano de Albogarst caindo para trás na escada
- Essa queda de Albogarst foi rigorosamente elaborada. Hitchcock criou uma
cadeira especial para o ator Martin Balsam sentar-se. Sua função era se
movimentar como se estivesse caindo. No plano seguinte ela já se encontrava no
início dos degraus e de fato caía no chão. O som nessa cena foi importante
para transmitir o pavor da queda. É através do som dos degraus (Albogarst
caindo para trás) que nos certificamos da queda, já que o enquadramento não
mostra Albogarst em plano geral.
Albogarst está no chão e recebe o último golpe
- A fotografia escurece; a música pára.
Há
uma correlação bem trabalhada com a música e a câmera, quando a câmera está no
alto à nota são mais agudas (mais altas), que é o trecho dos violinos. Quando
Albogarst cai para trás e fica no chão, as notas são mais graves (mais
baixas), frase tocada pelo violoncelo. Portanto há uma relação de altura entre
a posição de câmera e das notas na escala musical. Isto também pode ser
explicado pelo fato de Hitchcock não querer filmar a mãe de Bates de costas
para não gerar desconfiança no público, portanto ele filmou verticalmente, com
a câmera de alto. Os degraus também são significativos musicalmente: da mesma
forma que Albogarst cai do degrau mais alto para o mais baixo, a música
percorre a mesma direção. À medida que ele se aproxima do chão, a música vai
ficando mais grave até chegar ao ponto mais baixo, tanto da cenografia como
das notas musicais. Os degraus correspondem a cada intervalo descendente. Uma
seqüência elaborada a partir de contrastes: agudo / grave, primeiríssimo plano
/ plano geral, câmera alta / câmera baixa, dinâmica pianíssimo / dinâmica
fortíssima, fazendo alusão mais uma vez, à dupla personalidade de Bates. Isso
nos mostra que os conceitos tradicionais de composição da música “pura” têm
sua importância, mas não são decisivos para a intervenção sonora em trabalho
cinematográfico como esse.
“Psicose” é um de seus trabalhos mais conhecidos
na área da música do cinema. A música em um filme como este coloca o
compositor em uma “corda bamba”. Pode cair para um lado se sua música quiser
expressar um discurso próprio, sem dialogar com outras funções que compõem a
linguagem cinematográfica. Como a música para o cinema é dialógica, o
compositor enfraquece a dramaturgia cinematográfica se quiser seguir um
caminho próprio, buscando somente conceitos vigentes na composição da música
“pura”. Por outro lado, o compositor pode cair da corda se fizer uma
intervenção sonora rigorosamente concatenada com a imagem, fazendo da música
de cinema uma mera ilustração para a linguagem visual. Em outras palavras,
trabalhar a música a partir de clichês, com muitas trilhas dos filmes
“hollywoodianos” e do teatro da “Broadway”. Herrmann soube se equilibrar na
tal “corda bamba”. Sua trilha dialogou com toda a riqueza imagética do filme,
mas soube também imprimir um discurso peculiar, fazendo da música um
instrumento de especulação e de inventividade artística. É um efeito parecido
com a música de Nino Rota,
que constrói melodias simples que nos tocam profundamente e ficam marcadas.
Paradoxalmente a trilha consegue estar ligada às imagens e inteiramente livre
para percorrer caminhos abstratos. Não se trata de comparar a estrutura
musical de Herrmann com a de Rota. A intenção é mostrar que são músicos que
possuem uma estranha capacidade de nos colocar, ao mesmo tempo, dentro e fora
da atmosfera do filme.
Muitos
importantes compositores da época clássica hollywoodiana procuraram construir
uma música mais intelectualizada. O som apóia as imagens e através da música
eles nos guiam, para entendermos melhor o que as cenas querem nos transmitir.
A música de Herrmann é vinculada à dimensão emocional e psicológica. Faz
especulações interiores dos personagens, expressando de forma equilibrada, a
riqueza imagética do filme e os conflitos psicológicos destes. De uma maneira
geral, os intervalos de segunda menor, as sétimas e as nonas (não resolvidas)
são apreciadas pelo compositor. Outra característica das composições é a não
utilização de muitas notas e temas longos. Para tanto, Herrmann se utiliza de
ostinatos rítmicos e melódicos. Os ostinatos são figuras musicais que seguem
um padrão rítmico, melódico ou harmônico. As células repetitivas provocam um
movimento circular, gerando tensão. As intervenções sonoras em
“Psicose”
são marcadas por
temas curtos com motivos melódicos e rítmicos repetitivos. O tema de abertura
do filme, o mesmo que se repete em seqüências posteriores, é construído por um
motivo rítmico que se repete (o equivalente a semínimas em compasso binário).
Os violinos tocam uma frase musical melodiosa (bem legato) que
contrastam com o staccato dos baixos e violoncelos. Recordemos que o
compositor trabalha com polarizações para demonstrar os conflitos do
personagem Normam Bates. Este contraste: legato / staccato
funciona muito bem para designar esta semântica do filme. É importante
observar que a musicalidade de Herrmann não está centrada somente no estilo
harmônico e na instrumentação escolhida. Sua sonoridade é buscada em sutis
combinações timbrísticas, rítmicas e na dinâmica detalhada dos temas. O
Maestro construiu, com sua música, uma paisagem sonora bem definida. O estilo
de seu trabalho sonoro foi conseguido a partir de alguns elementos:
1.
A instrumentação:
Os cordofones friccionados (violinos, violas,
violoncelos e baixos) têm aspectos sonoros parecidos. Soam bem quando estão
contraponteando, o que contribui para a trilha tenha um estilo, um campo
sonoro mais definido. O número de instrumentos da música é, de certa forma,
compatível com a quantidade de personagens. A trama se desenvolve,
principalmente, em torno de quatro personagens (sendo que Marion morre nos
primeiros quarenta minutos de projeção). Este recurso é uma forma indireta de
se relacionar a textura da música com o número de personagens em cena. Além
disso, a instrumentação imprimiu uma cor orquestral homogênea. Preto e branco,
como o filme.
2.
O timbre:
A trilha utilizou os timbres de uma forma muito
particular. Os contrastes tímbricos: Som aveludado/ som metálico; os bruscos
saltos ascendentes do agudo (violinos, violas) para o grave (violoncelos,
baixos); os pizzicatos / sons longos e suaves; sons reconhecíveis/ sons
irreconhecíveis (ruídos) deram ao filme um discurso sonoro particular. Por
exemplo: quando Marion foge com o dinheiro começamos a ouvir uma série de
diálogos perturbadores que se fundem com a música, provocando um efeito de
angústia, inquietação. Por não estarmos vendo as pessoas dialogarem, o som
sugere dúvidas: Marion está ouvindo vozes apenas no seu consciente, fruto do
seu medo, ou os diálogos estão de fato acontecendo? Os diálogos foram tratados
com o mesmo cuidado da música. Foram pensados não só em sua dimensão
cognitiva, mas na dimensão da textura dramática da seqüência.
3.
O sistema harmônico:
O “sistema” tonal instável ampliou a atmosfera de
tenebrosidade do filme. É certo que em alguns temas percebemos uma linguagem
harmônica tonal mais clara. Em geral, os saltos descendentes de grande
extensão impedem que percebamos uma linha melódica clara. Entendamos que em
suspense não é interessante se construir uma linha melódica muito clara, já
que a narrativa não é obvia, possui reviravoltas e situações inesperadas. Os
intervalos não resolvidos, as tensões sem repouso e as insistentes repetições
de motivos rítmicos e melódicos completam esta paisagem.
4.
A dinâmica:
Os contrastes forte/fraco; legato/staccato;
molto sforzato/pianíssimo; efeitos percussivos/efeito harmônicos
contribuíram de forma decisiva para se conseguir uma ambientação sonora
compatível com a dramaticidade da película. A cena do banheiro confirma: As
notas agudas e metálicas do violino soam mais com a intenção de se conseguir
um efeito percussivo do que harmônico. Os pizzicatos das cordas agudas
em contraposição com as frases dos violoncelos e baixos enriquecem a dinâmica
da seqüência. Na verdade estes elementos formam um todo homogêneo, o que é de
grande importância para se delinear um estilo de uma trilha sonora.
“Psicose” é um trabalho cinematográfico cuja
grandeza reside, em grande parte, nos elementos formais que estruturam a
dramaturgia visual e musical. Hitchcock confirma em suas entrevistas com
Truffaut:
“Em Psicose, o tema me importa pouco, os
personagens me importam pouco, o que me importa é a montagem dos fragmentos do
filme, a fotografia, a trilha sonora e tudo que é puramente técnico conseguiam
arrancar berros do público.” (1986, pg. 287).
O
filme foi sucesso de público e de vendas (o orçamento foi de apenas oitocentos
mil dólares). Além disso, despertou o interesse de alguns críticos. Estudar
“Psicose” é, além de tudo, procurar perceber como os diferentes componentes da
linguagem cinematográfica se comunicam e estruturam a dramaturgia. Entendemos
que em uma obra cinematográfica há a possibilidade de se fazer diferentes
leituras. Porém, empobreceremos nossa leitura se não atentarmos para o fato de
que, no discurso fílmico de Hitchcock, o efeito provocado pela a estruturação
áudio-visual ocupa um primeiro plano. Não se trata de afirmar que o sentido do
filme está desvinculado da forma, mas que o sentido em “Psicose” deriva do
equilíbrio da forma.
Alfredo
Werney
Músico e estudante de Artes
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